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Vacinação

Atualizado: 2 de jun. de 2021

Tosse. Dor de garganta. Coriza. Anosmia. Ageusia. Diarreia. Dor abdominal. Febre. Calafrios. Mialgia. Fadiga. Cefaleia. Adinamia. Prostração. Hiporexia. Pneumonia. Dispneia. Taquipneia. Hipoxemia. Desconforto respiratório. Alteração da consciência. Desidratação. Dificuldade para se alimentar. Lesão miocárdica. Elevação de enzimas hepáticas. Disfunção da coagulação. Rabdomiólise. Cianose central. Letargia. Convulsões. Recusa alimentar. Sepse. Síndrome do desconforto respiratório agudo. Insuficiência respiratória grave. Disfunção de múltiplos órgãos. Pneumonia grave. Falência respiratória. Sepse. Choque séptico. Tromboembolismo. Falência múltipla de órgãos. Lesão hepática ou cardíaca aguda. Delírio. Encefalopatia. Agitação. Acidente vascular cerebral. Meningoencefalite. Olfato ou paladar prejudicados. Ansiedade. Depressão. Distúrbio de sono. Não durmo há dias. Faz sentido dizer que não durmo há dias? Nos roubaram o calendário, afinal. Qual a diferença de saber ou não saber contar os dias hoje em dia? Não durmo há séculos. Quando Deus criou os céus e a terra, eu já não dormia. O que não significa não deitar. Aliás, estou deitado há dias. Talvez há séculos. Me perdi no tempo já faz tempo. Tropecei, cai na cama e, de repente, não consigo mais me levantar. Será que posso dizer privilégio essa sorte grande de experimentar o caos com tanto atraso? Não que eu fosse indiferente antes, é claro. Nosso maior esforço desde que tudo começou sempre foi o de não se deixar tornar indiferente com a reprodução infinita da dor. Sinto que cumpri bem esse papel. Nunca deixei de me absurdar. Mas sabe... agora é diferente. De repente, me peguei na cama sem conseguir mais me levantar e fico pensando se não havia um comodismo nisso de resmungar diante da televisão do alto do quarto andar. Por que agora? Por que logo agora essa paralisia toda, esse peso morto sobre a cabeça, essa impressão constante de que o fim chegou? (Mas se o fim já chegou como tenho ainda esse sentido lógico de dizer o fim como algo passado?). Não sei, as coisas andam transbordando contradições. Desde que o mundo é mundo, é claro, mas parece que ao indivíduo a ficha sempre cai com direito a certo atraso. Ou melhor, parece que se pode conhecer as coisas sem senti-las autenticamente primeiro. Contam-me sobre a dor, contam-me sobre a dor todos os dias, todos os horários, todos os segundos. É óbvio que conheço a dor... essa palavra que engaveta tão bem a experiência, mas, de fato, acho que ainda não sei bem o que ela é. Até que... de repente. Não sei. É só essa convicção estranha que me veio, sabe? Essa convicção de que se eu tomar a coragem de olhar pela janela agora (não olharei, não posso olhar), verei o sol e a lua abraçados, nus entre as nuvens, fumando um cigarro depois de foderem, saboreando a fruição merecida após tantas eras de trabalho árduo. Não sei. Algo como o gato de Schröndinger. Enquanto estou aqui paralisado na minha cama, trancado nessa caixa manicomial que chamo de quarto, o mundo acabou e não acabou ao mesmo tempo. O mundo está vivomorto. Bastaria olhar para fora e ver para se ter certeza, para condenar o mundo com meu olhar. Mas não posso. E pensando bem... como sei que não sou eu, afinal, que estou vivomorto? Trancado há dias — talvez séculos? — neste quarto radioativo, quem me garante que ainda estou vivo? Ou mesmo que estou morto? Até alguém abrir a porta e me condenar, estou, de fato, vivomorto. E, sinceramente, às vezes penso que eu não reclamaria se me condenassem. O problema mesmo é que ninguém vai abrir a porta. Ninguém. É triste, mas não estou infectado. Ou melhor dizendo, estou triste, mas não estou infectado. Não fui infectado, minha família também não. Todos bem, muito obrigado. Todos devidamente bem em seus bunkers enquanto as trombetas tocam e o céu desmorona. E eu portanto deveria estar feliz. E agradecido. Deveria... não estou. Me sinto triste e ainda mais triste por achar que a minha tristeza imaculada tem um quê de ridícula diante da tristeza do mundo. Me peguei pensando outra vez que a condição humana é triste, como sempre pensei. Mas nunca tinha me pensado pensando que a condição humana é triste e quando vi a cena achei-a ridícula, um filme B mal feito. Pois do que adianta cantar da minha cama que a condição humana é triste se vivemos este triste momento em que nem a tristeza parece mais direito nosso? Este triste momento em que não se pode mais fruir da tristeza (esse ritual tão humano), pois não há tempo, não há chance para grande maioria das pessoas de se banharem em suas próprias lágrimas e de saírem de lá renovadas pelo seu desamparo. A tristeza é perigosa demais para este mundo, mas não esta minha tristeza triste de quarto trancado. E sim, a tristeza do choro em coro, sempre bem silenciada. É por isso que raptam a nossa tristeza ou, pior, a enlatam e nos vendem e nos fazem comprar o que é nosso com essas feições mais bem acabadas, artificiais, de um lamento hipócrita de quem nos faz chorar sobre nosso choro. Eu esqueci de desligar a televisão quando vim parar no quarto. Ou melhor, a televisão não se deixou desligar. Eu escuto ela daqui vinte quatro horas por dia (visto que não durmo há séculos). A cada segundo ela vomita mais números. Como em um segundo cabem quatro mil outros números de mortos? É mais fácil passar quatro mil números pelo buraco minúsculo de um segundo do que imaginar o fim do fim do mundo. É triste, muito triste, não poder ser triste como se deve. Sabe, acho que eu finalmente entendo os versos tristes do poeta triste: Quarenta anos e nenhum problema... resolvido, sequer colocado. Sequer colocado! Neste mundo não se pode ser triste verdadeiramente, porque estamos condenados a atuar nossa tristeza para quem assiste nossa tragédia como comédia. E o que fazer? O que fazer para romper com essa letargia, com esses sintomas mórbidos?

Um vislumbre:

um mundo sem vírus, um mundo sem genocídio. Ainda é possível? Claro que é possível se posso vislumbrá-lo com palavras. Um mundo por vir, pois, no fundo, todos sabemos que há uma pandemia (e um genocídio) que atravessa os séculos (nunca foi novidade, afinal). Um mundo em que não precisamos nos preocupar mais em encenar a nossa tristeza e sim em vivê-la intensamente. Um mundo que nos permita ser tristes, sozinhos, porém juntos de mãos dadas por aí, podendo requisitar algo mais da existência sem soar ridículos. Podendo modelar a tristeza como se modela argila. Um mundo em que se é permitido fazer arte e em que alguém ainda pode levar a sério a filosofia. Um mundo por vir. Viu?


Ridículo.


Como soa ridículo estar trancado no meu quarto, paralisado, desamparado, me atrevendo a ter esperança de um mundo por vir enquanto o mundo que temos acaba e não acaba ao mesmo tempo. Não acaba. Não acaba, enquanto eu não me levantar. Este mundo medíocre em que vivemos não acaba. Entende? Não acaba. Então, o que fazer? O que fazer para romper com essa letargia, com esses sintomas mórbidos?


É preciso olhá-lo.


Fulminá-lo com o olhar para condená-lo. Arrancar forças de sei lá onde vem as forças e condenar este mundo, não só com as palavras. É preciso odiar e compartilhar o ódio — essa é a maior forma de amor. Levantar desta cama mais um dia, como der, como for possível levantar, e continuar a odiar este mundo. Odiar e convocar outras pessoas a odiá-lo sem medo. Até que o fim do fim do mundo termine. E seja possível ser triste de novo. Ser triste fora da cama. Ser triste envolto por pessoas. Ser triste num abraço.


É preciso...


não se enganar com a racionalidade instrumental da curva e dos números, porque o presente é também passado e, de certa forma, futuro.


É preciso...


calar a boca de profetas


(calar a minha boca?)


calar a boca de todo mundo que diz que o mundo é mundo porque mundo.


É preciso...


desmoronar o mundo para continuar construindo o mundo.


É preciso....


injetar uma dose controlada de tristeza e de ódio deste mundo


para criar anticorpos e


transformar a doença em cura.


(única vacina possível)




Lucas Zafalon Garcia (1998) nasceu em Rio Grande (RS) e sofre, desde a epigênese da infância, de verborragias – pensa em renovar o homem usando borboletas, pois sabe que um galo sozinho não tece uma manhã. Formou-se, portanto, como consequência direta dessa condição, em Letras Português-Inglês (FURG) e atualmente é mestrando em Letras (UFRGS), na área de Estudos de Literatura, em que almeja estudar a literatura em tensão com a teoria social, a filosofia e a psicanálise. Publicou crônicas esparsas no falecido Jornal Agora e é autor do livro de contos Esta nossa tautologia, a ser publicado pela Concha Editora em 2021. Além disso, vez ou outra, compartilha alguns rascunhos poéticos despretensiosos em seu perfil do Instagram (@luczafalon).


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