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Não seja ele

Atualizado: 8 de abr. de 2019

He wears a mask and his face grows to fit it.

George Orwell


Pergunto se ele toma alguma medicação, ele me fala que faz tratamento para transtorno de humor bipolar. Diz que o pai tinha a mesma doença e nunca se tratou. Alcoólatra, o homem sumiu no mundo há alguns anos, e segundo o filho, não faz falta alguma: "tomo remédio para não ser como ele, doutora. Ainda lembro dos gritos, dos tapas e do xixi que fiz na cama até os dez anos. Nunca quero humilhar ninguém desse jeito".


Conta que a vida em casa era um inferno, discussões diárias, agressões físicas e verbais, até a mãe tomar coragem e mudar de cidade com os filhos pequenos a tiracolo.


Ele veio para fazer um admissional, é bem jovem, acabou o colégio no final do ano e mora com a mãe e o irmão menor. Quem me salvou foi a psicóloga, ele diz. Eu vivia brigando com todo mundo, por qualquer motivo, até sem nenhum motivo. Um dia ia acabar na cadeia, não fosse ela, não fosse o tratamento.


Ele sai da consulta todo faceiro, apto para trabalhar como auxiliar de cozinha num restaurante japonês - adora sushi. Quer fazer uma faculdade, um dia. Não bebe, não fuma.


"Não quero ser como ele".


Ele usa uma máscara e seu rosto cresce para se adaptar a ela.


Essa frase está na abertura de um ótimo documentário na Netflix sobre masculinidade tóxica, que se chama: The mask you live in. Recomendo a todas e todos, em especial aos homens, de qualquer idade.


E essa frase aí me fez pensar no quanto de escolha nós realmente temos nesse mundo, se a máscara vem antes de tudo, e nos é imposta desde tão cedo - que escolha temos, tanto os homens quanto as mulheres - enquanto prevalece essa cultura patriarcal e machista, misógina, repleta de preconceitos e excesso de testosterona? Menino não chora, isso é coisa de mulherzinha, rebate, revida, não leva desaforo para casa, seja homem, seja forte, não demonstre, aprende a bater, a lutar, a competir, a beber.


E não chora, não chora, nunca chore.


Há umas três semanas, um conhecido do meu filho, da mesma idade dele, se suicidou depois de levar um fora da namorada, há cerca de dois meses, outro amigo dele levou tantos chutes no rosto que precisou de uma cirurgia de sete horas para reconstituir a face; agredido na mesma briga, meu filho tem agora o nariz um pouco torto, resultado infeliz de uma pancada por motivo fútil- e quando não é fútil a violência e a pancada? Outra frase do filme me vem então à cabeça: você odeia nele o que odeia em você.


"Não quero ser como ele, doutora".


Penso no tanto de força e coragem que teve esse menino, o paciente, para romper o ciclo da agressividade, da dor e da raiva que herdou e aprendeu desde muito pequeno, no tanto que custou para ele se saber doente - é muito difícil se reconhecer doente numa sociedade como a nossa, que normaliza, banaliza (essa doença em especial), que não enxerga ou finge que não vê o quão profunda e grave é a nossa ferida, a minha, a sua, a deles.


Torço para que ele aprenda a fazer o melhor sushi do mundo, para que ele conheça bons amigos e bons amores, para que receba muitos elogios e incentivos, e que ele nunca pare de querer ser um homem melhor e diferente.


Porque é urgente a cura.


Torço para que ele, mas não só ele, todos eles se livrem dessa máscara incômoda, e que descubram, um a um, seu próprio rosto, sua face bonita.


Porque é urgente.


É urgente que eles possam chorar.


Trabalho como médica, me traduzo como escritora. Saí de um lugar para onde não pretendo voltar. Agora sigo os desvios, marcando com pétalas e palavras meus descaminhos. O amor errado mais certo do mundo (Concha Editora, 2017) é meu livro de estreia.

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