Uma única certeza
demora em mim:
o que em nós já foi menino
não envelhecerá nunca.
Mia Couto
Comemoro meu aniversário de cinquenta anos com um joelho ralado, resultado de uma queda de bicicleta. Fazia tempo que não ralava o joelho, mas passei a infância, adolescência e boa parte da vida com as pernas cheias de hematomas e arranhões. Fruto de muitas quedas, mas também de uma falta de senso de espaço crônica.
Agora que chego a uma metade de século, como meu filho gentilmente gosta de lembrar, os joelhos deveriam ser lisos na mesma proporção que o rosto enruga e as roupas descem, se tornam mais sóbrias, elegantes, o cabelo encurta (cortei, mas não foi por isso - ou talvez tenha sido), a voz se torna mais calma, os hormônios despencam, os músculos idem, as ideias se coordenam perfeitamente, o sono diminui, a fome aumenta, as ressacas também, o sexo fica desimportante e ninguém se importa, e eu podia fazer uma lista interminável aqui, mas a realidade é que tudo isso é mentira, mesmo que seja, em parte, verdade.
Outro dia conversava com uma motorista de aplicativo e ela me contou que comemorou os cinquenta anos numa casa de festas infantil, com o tema do ursinho Pimpão, que ela adorava quando criança. "Os convidados estranharam, mas depois curtiram."
Os cinquenta são os novos 15, ao menos em termos de festa.
Neste universo (masculino) sem qualquer sutileza, romantizado ao extremo, envelhecer é violento, e é preciso resistir o tempo todo. Aos padrões, às cobranças internas e externas, num esforço contínuo de aceitação do que se é, do que se transforma lentamente, alheio à nossa vontade, num desafio constante às regras - implícitas e nem tanto - de tudo que nos foi inventado, ditado, imposto para ser e acreditar.
A motorista do aplicativo faz sessenta no ano que vem. "A minha festa de sessenta anos vai ter o sexo como tema, já estou planejando. Porque tu sabe, vou ser sexygenária." Ela dá uma risada gostosa, e eu rio junto.
É isso.
Não teve festa de cinquenta. Nesse sentido, nasci velha. Mas vai ter resistência e bom humor. Com sorte, a segunda metade vai ter joelho ralado, sim, saúde, saia curta, palavrão, sexo selvagem, muito sexo com ou sem amor, calorões, crise de ansiedade, roupa colorida, poesia, confusão, viagens, trabalho, pedaladas, vinho, amigos, contradição, outras quedas - com mais cuidado para não quebrar nenhum osso, sim, um pouco mais de calma - talvez. E eu já sei de antemão que não vai ter regra nenhuma, garantia ou certeza.
Porque apesar do tempo e de tudo, tem uma parte nossa que é sempre improviso. Essa, que rala joelhos, que ama, faz arte, que dói. Mas que só dói tanto porque ainda está muito viva.
Sobre Daniela Altmayer
Trabalho como médica, me traduzo como escritora. Saí de um lugar para onde não pretendo voltar. Agora sigo os desvios, marcando com pétalas e palavras meus descaminhos. O amor errado mais certo do mundo (Concha Editora, 2017) é meu livro de estreia.
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