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Uma nova mulher

Na hora calma da sexta à noite, o som de um saxofone invade o quarto e a cama, soprando nos meus ouvidos os acordes de I`ve got you under my skin.


Um homem, imagino que seja um homem, toca no prédio ao lado, e eu cantarolo a música aqui, dentro da minha cabeça, num sorriso mudo de quem é desafinada por nascimento, insistente por falta de noção.


Acordo lentamente para a realidade da madrugada, com seu cheiro ainda grudado no meu corpo, te tenho gravado sob a pele numa tatuagem de fogo e carne que já não dói. Acho que nunca doeu.


Acaba a música e alguém pede bis, o cara toca bem, nem me importa a quebra do silêncio na meia noite desse setembro estranho. Acendo a luz da cabeceira, abro um pouco mais a janela, evaporando o sonho recém acordado.


O músico segue com o Frank, My way , e eu seguro a vontade de cantar alto e forte. Eu quero poder ouvir essa música no dia em que o fim chegar e pensar, sim: eu fiz do meu jeito.


Embora eu não tenha planejado cada etapa, sequer tenha tido muito cuidado, embora espere que esse dia ainda esteja bem longe, quero poder dizer, no descer dos panos, que sou e fui dona de mim, senhora das minhas vontades. Hoje eu posso.


Decidir por um caminho ou outro, sem percorrer todas as estradas, sabendo que a cada curva o tempo se dobra e o papel do mapa vai se rasgando e gastando, no manuseio incessante, até não restar indicação alguma que não venha da coragem, do mais puro sentido, instinto elevado de sobrevivência. Saber que é só aí que começa a verdadeira viagem.


A cada bifurcação existe uma escolha. Um encontro e um adeus, que andam sempre juntos. Sem romantismo e sem atalhos. Não há atalhos. Há somente escolhas. Verdades e consequências.


O saxofone se cala por instantes. O barulho da chuva na janela emudece a música e desperta memórias molhadas e doces. Numa cadência leve, melancólica, sem nostalgia. Toda lembrança é também água.


Do meu jeito, agora. É assim que tem sido, faz uns anos já: no bom e no ruim, na saúde e na doença. Fácil e mais vezes difícil, mas sempre tão infinitamente melhor. Eu, caçadora de mim.


Uma brisa fresca adentra a noite morna, o sono volta ao quarto, se esgueira na cama, silencioso e escorregadio como você. Desligo o abajur, fecho os olhos. Quero ficar em seus braços.


A música recomeça, o sax se mistura ao som das nuvens de chuva, e tudo que eu desejo agora é uma breve canção de ninar.


Trabalho como médica, me traduzo como escritora. Saí de um lugar para onde não pretendo voltar. Agora sigo os desvios, marcando com pétalas e palavras meus descaminhos. O amor errado mais certo do mundo (Concha Editora, 2017) é meu livro de estreia.

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